sábado, 21 de março de 2015

Travessia

                        

      Viver é travessia. Por não sabermos o destino dos caminhos do amanhã, aprendemos a enxergar as belezas no caminho do hoje, único que realmente possuímos. Só temos o agora, o próximo momento é incerto, indefinido, lugar de mil possibilidades.
      Nós somos nossos próprios caminhos, os únicos comandantes dessa roda viva que faz pulsar a existência. Com o tempo, entendemos que a dor nos coloca em movimento e aprendemos a agradecer até mesmo por nossos sofrimentos, tão necessários a nossa decisão por autocuidado.
      Sair da zona de conforto é assumir o risco de ser o único responsável pelo rumo do próximo passo. Aprender a gostar da própria companhia e a reconhecer o privilégio de estar vivo como uma fonte de alegria. Entender que algumas perdas são necessárias e algumas despedidas são transformadoras. Há descobertas que só a solidão permite, assim como há sabedorias que só as dificuldades alcançam. No final, a serenidade para lidar com as próprias angústias com mais tolerância, a capacidade de ternura e leveza diante dos próprios desejos.
     Que saibamos deixar com que cada momento dessa caminhada encontre sua própria música. E que seja possível escuta-lá em todo seu esplendor. Que os nossos olhos sejam capazes de encontrar as belezas inesperadas de cada percurso, permitindo que aprendamos com mais delicadeza as paisagens que ainda não atingimos. E que nessas paisagens reconheçamos nossas sombras, mas também reconheçamos nossas dádivas. As dádivas de refazer o caminho, quando necessário.  Ou, às vezes, apenas se deixar andar ao sabor do vento.
      Para entender a vida como travessia, é preciso atravessar a ideia de possuir as bússolas ou de que o destino pode ser mapeado como um tesouro talvez inalcançável. Porque viver é misterioso, mas um mistério absolutamente encantador.

sábado, 13 de dezembro de 2014

Prefiro sentir






      É preciso percorrer muitos caminhos para aprender a aliviar-se. Só o tempo, no emaranhado de experiências e emoções incendiadas e espantosas, traz alguns entendimentos necessários. É difícil não ter medo dos riscos, porque todos nós queremos evitar a dor. O medo de doer confunde-se com o medo de viver. E o medo de viver, por vezes, confunde-se com a angústia profunda de se julgar incapaz de superar aquilo que dói, que incomoda, que modifica.
      Não quero ter  um coração humano que, embora conheça sua capacidade de criar belezas, encerra-se no conformismo de esperar por belezas prontas. Não quero esperar ser feliz quando alcançar fatos grandiosos e conquistas imponentes, quero a felicidade do agora, as revelações de amor das coisas pequenas, os sinais luminosos dos instantes de alegria.
      Garimpar a vida, como quem sabe que o caminho de busca pode não ter fim, mas vale os mistérios de ternura de cada passo. Recusar qualquer projeto que não fascine o coração e não faça da vida uma experiência de prazer e sabedoria. Não quero deixar meu barco parado no porto por medo de navegar nos mares revoltos da vida. Por vezes, as ondas quebrarão com mais força e será preciso resistir, mas logo os momentos de calmaria trarão os ventos amenos. Tudo sempre em constante movimento, nessa dinâmica contínua entre as turbulências e os vôos suaves.
      Ser capaz de superar a solidão, de fazer de mim mesma um abrigo seguro, uma companhia estimulante, uma fonte de coragem. Que me perdoe o racional, mas eu prefiro sentir. E sentirei até a última gota de sangue que correr no corpo, até o último suspiro de descanso, até a despedida do último ciclo. Mas saberei que fiz de mim o que acreditava, que não deixei a tela da minha alma em branco esperando ser por outro alguém pintada. E de todas as covardias inevitáveis, que eu evite ao menos uma: o desperdício imperdoável de, sentindo amor, não saber expressá-lo. Que cada um que encontre suas formas possíveis para o declarar. A palavra é a minha.


terça-feira, 30 de setembro de 2014

Eu espero



      Espero que a força de tudo aquilo que me dói não me torne cega para tudo aquilo que me acaricia a alma. Que sempre que a vida correr de modo ferozmente acelerado, eu consiga encontrar motivos para respirar com a calma que eu preciso. Que quando a escuridão de algumas fases encobrir o brilho do que eu acredito, que eu me permita enxergar alguma brecha de luz nos menores recantos das minhas convicções.
      Espero que as velhas frustrações não me façam cética para as novas tentativas. Que os medos mais arrebatadores não me privem das coragens que já conquistei. Que as feridas que meus pés carregam não me impeçam de preferir andar com os pés descalços e o passo sereno.
      Espero que eu não me esconda da solidão, sabendo que ninguém mais que ela pode me levar para passear por locais de mim que ainda não conheço. Que o convívio com as responsabilidades não seja mais intenso que o convívio com o amor. E que eu tenha sabedoria suficiente para saber escolher o que vale a pena reverenciar.
      Espero que eu não conceda aos cansaços um tamanho maior do que eles merecem. Que os períodos de exaustão do corpo não se transformem em exaustão da alma e me levem para longe do que eu tenho de mais bonito. Que eu me aproprie cada vez mais de tudo que é meu, sem esquecer do quanto preciso dos outros.
      Espero que, diante das dores inevitáveis, eu não perca a confiança nos próximos sorrisos. Que eu reconheça que aprender é o grande privilégio de quem está vivo. Que riqueza é conseguir levar bagagens mais leves e sentimentos mais simples.
      Espero que eu saiba preservar ao meu lado as pessoas que enxergam a vida com entusiasmo. Que eu entenda que, quase sempre, insistir em ser melhor que os outros é insistir em ser pior para mim. Que ser bondoso e grato é a única maneira genuína de ter fé.
      Espero que eu não me esqueça de que liberdade e responsabilidade andam juntas. Que os ventos mais fortes podem me amedrontar, mas jamais destruir o que eu souber proteger. E que eu tenha a coragem de me enfrentar das formas mais ousadas, até lapidar o que me faz verdadeiramente feliz, apesar de todos os meus pedaços que ficarem para trás.
      Espero que seja assim...  


segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Deixar-se florir



      Entre tantos desencontros, entre tantos descompassos nessa dança feroz e mansa chamada de vida, chega a hora de compreender que o encontro com o outro nasce antes do nosso encontro com nós mesmos.
      O encontro com o outro é revelador, mas, na hora do medo, da dúvida, do último impulso para o salto, do limite do precipício, descobrimos que é só entre nós e a nossa dor. E é preciso nos oferecer um suporte terno e ter mãos muito delicadas para fazer da dor um tecido macio onde se possa bordar as durezas da vida.
      Nessa arte de encontros e partidas que é viver, percebemos, enfim, em algum momento de distração, que os melhores encontros são os que abrem a porta da nossa vastidão. Os que nos desafiam a desencorajar nosso egoísmo e nosso orgulho, a repensar o valor de nossas fortalezas e a saber que abandonamos terrenos férteis de nosso coração quando os deixamos ausentes de nós, carentes de nós, saudosos de nós.
      Quando, então, já comemoramos o fim das nossas certezas e reconhecemos que só a dúvida pode nos impulsionar a voar no risco do próximo segundo. Sem precisarmos mais nem das perfeições nem de tantas vãs razões, ficamos mais delicados com os nossos passos, tão humanos e falhos e, talvez só por isso, tão preciosos e raros.
      Tem que se ampliar para dentro. Não adianta só cultivar: não é possível ofertar um jardim antes de se deixar florir.

sábado, 16 de agosto de 2014

Mudando o olhar



Que cada coisa ganha o tamanho que permitimos, já não me era segredo. Mesmo assim, andava ao encontro da velha armadilha de responsabilizar todos os acasos pela forma dos meus traços. Mal sabia que, abandonando meus traços, tornava-os cada vez mais solitários.

Não sabendo o que fazer com cada coisa e também não encontrando espaço para descobrir o tamanho delas, decidi mudar o que posso: o meu olhar. Coloquei um pouco de serenidade nos espaços vazios do meu modo de enxergar e então respirei. A luz iluminava mais forte do que eu imaginava as frestas diminutas da cidade. Já não era o canto dos pássaros, era o soar dos desejos. Até as ondas da arrogância e do orgulho quebraram mais mansas no meu distante mar.

Aquilo que não há como nominar ganhou uma força enorme dentro das minhas palavras. Tenho agora um olhar que mistura os sentidos, que não se conforma com a imagem e busca os cheiros, os sons e os sabores. Ganhei vocação para recusar temperaturas mornas e coragem para direcionar o querer. Apropriei-me dos detalhes para servir de lupa. Estiquei meus sentidos para não deixar escapar sequer um pedaço da minha fé. A fé inocente, a crença na beleza do próximo segundo e a paz de já não imaginar o risco da próxima hora.

Optei pelo doce alento de me saber humana. Minha abundância agora é aceitar que cada coisa tem seu mistério e cada tempo tem suas revelações. Mudei o meu olhar para aprender a amar as insignificâncias. Eu não encontro alegria nas complexidades.

sábado, 2 de agosto de 2014

Passo em falso





Talvez viver seja realmente isso: saber que, na corda bamba das emoções, sempre há a possibilidade de um passo em falso. Às vezes, um único passo errado impossibilita todos os outros e, não importa o quanto já se tenha andado, será necessário retornar ao início do caminho.

Quero conviver com as sensações de instabilidade e desequilíbrio de forma menos esmagadora. Quero descobrir as delícias dessa dinâmica da vida, fechar os olhos, deixar o vento despentear os cabelos, usar o descompasso como dança. Aceitar minha humanidade de não ter sempre um solo firme, nem um pisar seguro. Deixar-me balançar sem racionalizar sobre a possível queda, sobre o risco do próximo segundo.
 
Quero fazer as pazes com a minha angústia e não mais sentir que estamos concorrendo pelo posto de juiz carrasco. Quero novamente a serenidade do nosso entendimento mútuo no fim do dia, no fim da certeza, no fim da coragem. Sua companhia confortável no início da solidão, no início da dúvida, no início do medo. Quando, juntas, somos capazes de iluminar os refúgios mais escuros da noite.
 
Tenho confundido clareza com sinceridade, calma com cautela, restos com resquícios, metades com inteiros. Tenho enclausurado monstros que eu já havia libertado, rasgado minhas cartas de alforria para obter velhos hábitos escravos. Tenho criado um labirinto infinito em busca de entendimentos.
 
Não quero uma angústia que me sufoca a alma, que me deixa seca diante do mar de palavras, que me empurra para dentro. Não quero uma angústia que me deixa covarde diante das pequenas coragens e forte diante das grandes acusações. Quero aquela angústia em forma de urgência de viver, que me faz libertária, revolucionária das minhas próprias causas, defensora do direito das minhas próprias contradições.
 
A angústia amiga que me faz encarar a corda e que me impulsiona a dar o próximo passo, mesmo que  seja um passo em falso.
 
 
 
 

quarta-feira, 16 de julho de 2014

O tempo foge




Gostava de olhar o mar quando eu era criança. Olhar por olhar, sem filosofia ou entendimento algum. O vento ensinou-me a amar o silêncio, eu, que sempre me entendi melhor com as palavras. Admirava a imensidão, o não saber o que existia depois da linha. Tudo parecia ser infinito, inclusive o tempo, que fugia em pensamentos, sensações e uma conexão absurdamente simples e singela com a natureza. O mar sempre mudou minha ideia de tempo. Depois, não houve mais tanto tempo para olhar o mar. Cronometrado, apressado, atarefado, o tempo foge. Não parece mais com sentimentos, mas com números frios, que nos aproximam do fim de qualquer coisa. 

Tenho trocado o mar por montanhas, infinitos que se parecem. Alguns momentos me lembram que o tempo continua fugindo, mas, estranhamente, parece fazer o caminho de volta. Palavras, paisagens, silêncios que me levam de volta a momentos que eu amava, quando volto a ser criança com sua sabedoria de não precisar saber o que vem depois de um abraço ou de um suspiro. Começo a voltar a ser o que eu sempre fui e não me lembrava: atemporal. Sem um tempo certo nem cronologias exatas, sem pensar no que existe depois da linha do mar, depois do topo da montanha, depois da chuva, além das estrelas.

Já não tenho tanto medo de perder tempo, quando sei que o tempo não existe. Às vezes, uma eternidade habita um segundo, às vezes uma vida inteira segue deserta. 

Deixo que o tempo fuja. Só peço que ele leve junto o medo...