terça-feira, 27 de agosto de 2013

Desabafo de uma "quase médica"


 

No mês passado, no Hospital Mental, meu paciente me chamava de "quase médica". Ele dizia que eu era a “quase médica” preferida dele. Aceitei o vocativo com muita simpatia. Não pela proximidade da formatura, mas por ser essa a minha sensação permanente. Acho que em dezembro, com diploma em mãos, ainda me sentirei uma "quase médica". Daqui a alguns anos, provavelmente também. É que ser médico (o verdadeiro, o decente, o bom) é algo tão complexo, que é inevitável se sentir sempre à mercê: uma mesma doença que se manifesta de diferentes formas, diferentes doenças que se manifestam da mesma forma, um mundo que habita em cada ser humano, mostrando que a doença não é apenas física, é também uma manifestação de tudo que não resolvido na mente. Por isso, o sentimento de nunca estar completamente pronto.
            Quando, há seis anos, com apenas 17 anos, eu iniciava o curso médico, ainda acreditava no que meus parentes diziam, no que meus amigos diziam, no que o mundo dizia: "a vida está ganha, a Medicina é só alegria, dinheiro fácil". Hoje, o mundo é que não acredita no que eu digo. Ouvia falar que o SUS estava um caos, que as pessoas padeciam por atendimento, que a saúde era abandonada, mas, como para a maioria das pessoas com quem convivo, essas eram frases longínquas, que não me atingiam, por isso meu senso crítico era irreal, como o da maioria das pessoas com quem convivo.
            De repente, passei a participar de uma realidade que não era minha, mas que comecei a me sentir responsável. Passei a chamar um paciente de meu, mesmo sem ser sua médica, pois assim ele me considerava. Fui obrigada a sair da minha ignorância, do meu egoísmo, da minha impunidade social. Fui obrigada a desmistificar todos os meus (pre) conceitos, a enxergar pequenez nas minhas dores, a chorar por uma lástima que não era minha. Mas eu não teria feito nada disso se não tivesse passado por todas essas vivências, como a maioria das pessoas com quem convivo não passou.
            Durante meus estágios em hospitais públicos (todos não remunerados) mudei minha visão de mundo. Nunca passei fome, nunca passei frio, nunca soube o que é dormir no chão de um hospital, nunca vi nenhum familiar meu morrer por falta de leito de UTI, mas Deus me deu uma chance de aprender com quem passa por tudo isso. Muito cedo na vida, tive que adquirir uma maturidade que eu não poderia ter naturalmente para ser capaz de fazer a diferença na vida de alguém (às vezes, pessoas que têm idade poderiam ser meus avós me pedem conselhos nos consultórios e eu só posso esperar que uma força maior que disponibilize as palavras certas diante de uma experiência que não tenho).
            Em um estágio em um hospital de trauma de Fortaleza, eu e outra acadêmica dividimos cama com colchões furados, deitamos enroladas e sentimos baratas passando, comemos alimentos intragáveis oferecidos pelo hospital, fomos xingadas por não conseguir atender todos ao mesmo tempo, atendemos sozinhas presidiários em uma sala repleta de material perfuro-cortante, tememos quando iniciava o tiroteio no bairro e sabíamos que o hospital não contava com segurança adequada, colocamos nossa vida em risco inúmeras vezes para tentar atender a demanda de pacientes que não paravam de chegar em dias e noites de domingo. Coitadinhas? Não! Nós escolhemos estar ali, éramos privilegiadas por estar do outro lado e agradecemos por essa experiência, não teríamos crescido tanto sem ela, como a maioria das pessoas com quem convivo.
            No internato, momento ímpar da formação do médico, o choque foi ainda maior. Pessoas padecendo no chão dos hospitais, falta de leitos, falta de material, equipes de saúde cansadas de lutar contra o sistema, de conviver com tanta desgraça, de cargas horárias desumanas de trabalho. Um desestímulo que, inevitavelmente, durante muitas situações, era repassado aos pacientes. Convivi com médicos humanos e competentes, quase heróis em uma rotina cruel. Convivi também com médicos prepotentes e arrogantes, assim como convivi com vários outros profissionais bons e ruins de muitas áreas. Como diz o texto, aos ruins dei meu cemitério interior. Aos bons, minha inspiração. Desde cedo, meu pai sempre me disse que generalizar é ignorância.
            Quem não sabe o que é um paciente segurar no seu braço e pedir socorro, quem não sabe o que é um paciente pedir um real para comprar um remédio que está faltando no posto, quem não sabe o que é um paciente se ajoelhar aos seus pés e implorar por um leito para sua mãe que está há meses no corredor, também não sabe o que é o coração disparar. Quem, da mesma forma, não sabe o que é sentir a gratidão de um paciente também não sabe o que é se sentir recompensado. A maioria das pessoas com que convivo não sabe. Não as julgo, eu também não sabia.
            Por isso, é tão difícil engolir que a culpa é toda sua, da falta de leitos e medicamentos, das mortes precoces que poderiam ter sido evitadas, dos corredores de hospitais onde os pacientes são denominados por sua posição geográfica, pois não há mais como enumerar os leitos improvisados. Por isso, é tão difícil se dedicar tanto a uma profissão e aceitar calado que médicos estrangeiros que não foram revalidados recebam a mesma atuação de quem teve que passar por tudo isso e ainda preencher todos os seus horários livres com estudo.
            Qualquer médico, de qualquer nacionalidade, deve ser bem vindo em qualquer país (que tempos são esses em que novamente diferenciam as pessoas por raça?), desde que provem seus conhecimentos. Não é médico alguém que diz saber Medicina, mas que não pode provar que sabe. É uma vida que está em jogo. Todos os profissionais devem ser revalidados até mesmo para que possam atuar dignamente, livremente onde quiserem, com os mesmos direitos trabalhistas e humanos que qualquer outro. Um médico cubano é, sobretudo, um médico, que merece respeito como qualquer ser humano. Mesmo contra essa política suja, agradeço por não estar no lugar deles, por não ter que fugir de uma Ditadura e me submeter a condições insalubres de trabalho por uma quantia injusta, para que minha família receba o mínimo. Por não ter que aceitar calado um Governo pegar mais de 70% do que eu ganho e ser tratado como uma mercadoria, levada de um canto a outro, em troca de favores e interesses entre políticos, vítimas de um esquema de desvio de dinheiro público.
            Só temo pelo paciente, aquele mesmo que me ensinou com seu sofrimento, que me fez ter mais humildade do que ganância. Porque esse mesmo paciente continuará sem ter acesso a exames, a hospitais equipados, a ambulâncias. Esse mesmo paciente continuará implorando por um direito seu, sem nem ao menos saber que o possui, o direito à saúde. Continuará a ver tomografias, UTI, quimioterapia e cirurgias como sonhos distantes que não chegarão a tempo. Esse mesmo paciente será vítima de um Governo que despreza sua própria Constituição e esquece que saúde é o completo bem estar físico, social e espiritual e que acredita que alguém pode ter saúde sem ter saneamento básico, sem alimentação digna, sem educação, sem segurança, sem lazer. E, ainda, que ele terá saúde apenas feita por um médico solitário em uma cidade distante. Sim, solitário, pois em nenhum momento esse Governo lembrou-se dos outros profissionais de saúde, esquecendo também que não se faz saúde sem eles.
            Dessas pessoas mais carentes, com quem conversei nos ambulatórios nos últimos dias, recebi a clareza e o discernimento que não esperava. Existe uma coisa que ensina muito mais que os colégios e os livros: a dor. A sensibilidade social e humana que não se aprende com o estudo, mas com a dureza da vida. Dos mais instruídos e com maior acesso às informações, recebi julgamentos de baixo nível, críticas vindas de quem jamais presenciou o SUS, de quem aplaude um Governo irresponsável, mas que não se consultará com médicos não revalidados. De quem chama os outros de desumanos, mas defende uma “Medicina pobre para o pobre e uma rica para o rico”. De quem ganha a vida com troca de interesses, de quem vive de festa em festa, de quem dirige alcoolizado, de quem depende do trabalho dos pais, de quem procura os médicos especialistas particulares quando adoece, de quem abandonou sua cidade interiorana e hoje vive nas capitais.
            A esses pacientes humildes, sofridos, guerreiros, lutadores, todo o meu respeito. Infelizmente, não serei eu sozinha a mudar suas condições de saúde, seu acesso a uma estrutura digna de atendimento. Não serei eu sozinha a convencer quem não quer ouvir. Não serei eu sozinha a pedir para que pessoas que não conviveram com essas mazelas sociais tenham sensibilidade e solidariedade. Não serei eu sozinha a convencer que não se deve julgar uma pessoa só porque ela tem um salário maior que o seu, pois isso exige primeiro que se ultrapasse o próprio egoísmo. Mas serei eu, mesmo com a ideologia ferida, mesmo recebendo inúmeras denominações vergonhosas que não me pertencem, que farei o melhor que estiver ao meu alcance sempre. Agradeço a chance de conviver com tanta gente simples. Que Deus me deixe ser uma “quase médica”, mas que me livre de ser uma quase humana.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Fica sempre algo

Fica sempre algo. Por trás dessa urgência silenciosa de liberdade, desse apreço pelas sutilezas, dessa esperança teimosa no canto do sorriso. Fica sempre algo. Dentro de cada palavra dita ou calada. Dentro de cada passo dado com a coragem de quem só consegue partir. Fica sempre algo. Em cada olhar que percebe as insignificâncias, em cada pulsar de desgosto diante da injustiça. Fica sempre algo. Após cada descanso na simplicidade, após cada silêncio revelador, após a nossa tão dolorosa quanto necessária revelação de beleza diante da solidão. Fica sempre algo. Durante o segundo de ousadia, o quebrar do conformismo, durante a entrega às pequenas alegrias. Fica sempre algo. Na mania de encantar a rotina, na rejeição ao egoísmo, na revelação de enxergar na dor do outro a cura para a sua. Fica sempre algo. Com a reverência à gentileza, com o compartilhar de sabedoria, com a escolha só pelo que estimula paixão e criatividade. Fica sempre algo. Através da poesia que insiste em colorir a dureza dos dias, da música que tira o corpo para dançar na vida, do desprendimento de, enfim, já não precisar agradar. Fica sempre algo. Por aceitar com doçura nossa finitude, por ver possibilidades na imperfeição, por avistar sempre uma nova estrada diante de cada abismo interior. Fica sempre algo. Mas só fica para os visionários. Os outros já  deixaram passar...