terça-feira, 30 de setembro de 2014

Eu espero



      Espero que a força de tudo aquilo que me dói não me torne cega para tudo aquilo que me acaricia a alma. Que sempre que a vida correr de modo ferozmente acelerado, eu consiga encontrar motivos para respirar com a calma que eu preciso. Que quando a escuridão de algumas fases encobrir o brilho do que eu acredito, que eu me permita enxergar alguma brecha de luz nos menores recantos das minhas convicções.
      Espero que as velhas frustrações não me façam cética para as novas tentativas. Que os medos mais arrebatadores não me privem das coragens que já conquistei. Que as feridas que meus pés carregam não me impeçam de preferir andar com os pés descalços e o passo sereno.
      Espero que eu não me esconda da solidão, sabendo que ninguém mais que ela pode me levar para passear por locais de mim que ainda não conheço. Que o convívio com as responsabilidades não seja mais intenso que o convívio com o amor. E que eu tenha sabedoria suficiente para saber escolher o que vale a pena reverenciar.
      Espero que eu não conceda aos cansaços um tamanho maior do que eles merecem. Que os períodos de exaustão do corpo não se transformem em exaustão da alma e me levem para longe do que eu tenho de mais bonito. Que eu me aproprie cada vez mais de tudo que é meu, sem esquecer do quanto preciso dos outros.
      Espero que, diante das dores inevitáveis, eu não perca a confiança nos próximos sorrisos. Que eu reconheça que aprender é o grande privilégio de quem está vivo. Que riqueza é conseguir levar bagagens mais leves e sentimentos mais simples.
      Espero que eu saiba preservar ao meu lado as pessoas que enxergam a vida com entusiasmo. Que eu entenda que, quase sempre, insistir em ser melhor que os outros é insistir em ser pior para mim. Que ser bondoso e grato é a única maneira genuína de ter fé.
      Espero que eu não me esqueça de que liberdade e responsabilidade andam juntas. Que os ventos mais fortes podem me amedrontar, mas jamais destruir o que eu souber proteger. E que eu tenha a coragem de me enfrentar das formas mais ousadas, até lapidar o que me faz verdadeiramente feliz, apesar de todos os meus pedaços que ficarem para trás.
      Espero que seja assim...  


segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Deixar-se florir



      Entre tantos desencontros, entre tantos descompassos nessa dança feroz e mansa chamada de vida, chega a hora de compreender que o encontro com o outro nasce antes do nosso encontro com nós mesmos.
      O encontro com o outro é revelador, mas, na hora do medo, da dúvida, do último impulso para o salto, do limite do precipício, descobrimos que é só entre nós e a nossa dor. E é preciso nos oferecer um suporte terno e ter mãos muito delicadas para fazer da dor um tecido macio onde se possa bordar as durezas da vida.
      Nessa arte de encontros e partidas que é viver, percebemos, enfim, em algum momento de distração, que os melhores encontros são os que abrem a porta da nossa vastidão. Os que nos desafiam a desencorajar nosso egoísmo e nosso orgulho, a repensar o valor de nossas fortalezas e a saber que abandonamos terrenos férteis de nosso coração quando os deixamos ausentes de nós, carentes de nós, saudosos de nós.
      Quando, então, já comemoramos o fim das nossas certezas e reconhecemos que só a dúvida pode nos impulsionar a voar no risco do próximo segundo. Sem precisarmos mais nem das perfeições nem de tantas vãs razões, ficamos mais delicados com os nossos passos, tão humanos e falhos e, talvez só por isso, tão preciosos e raros.
      Tem que se ampliar para dentro. Não adianta só cultivar: não é possível ofertar um jardim antes de se deixar florir.