sábado, 20 de outubro de 2012

O médico

               Penso que o mundo seria melhor se, em suas passagens terrenas, todos os seres humanos vivenciassem a prática médica. Não a prática da Medicina mercantilizada, mecânica, moderna. Mas a Medicina que ainda coloca as relações de amor acima das relações de poder.
                Lembro-me que, quando criança, escutava as pessoas falarem do heroísmo dos médicos, dos mistérios que cercam suas vestimentas brancas, a projeção social frente à valia da sua palavra, última e incontestável para os que a esperam.
                Vejo que os mistérios em muito ultrapassam esses limites. Ser médico, às vezes, é ter a coragem (e que coragem!) de oferecer sua própria impotência para aliviar a dor de alguém. A impotência da sua meditação, da sua oração, dos seus conhecimentos. Mais do que o remédio que alivia ou o procedimento que cura, aprende-se a ser médico quando, muitas vezes, só podemos oferecer nossa humanidade, nossas mãos frias e trêmulas, nosso compartilhar do medo, nosso despreparo frente às despedidas.
                Mais que as noites de estudo, que os anos de preparação, que a atualização científica constante, que as horas exaustivas de trabalho, que os testes injustos e contínuos dos conhecimentos técnicos, que as condições desfavoráveis de exercer a profissão, que o desrespeito das políticas públicas; ser médico é vencer a ponte da chegada e da despedida da vida, compreendendo que os dois extremos fazem parte de um só caminho e que, para cuidar da vida, é também necessário saber cuidar da morte.
                A morte, essa passagem rica em significações, onde todos os nossos mais belos sentimentos ganham uma conotação assustadora – momento em que o amor e a paixão deixam de ser nosso bálsamo e transformam-se no embalo da nossa solidão, na tragédia da nossa solene saudade. A morte, a única experiência democrática, onde todas as mãos, as ricas ou as pobres, de qualquer cor ou qualquer raça, abundantes em ouro ou em lutas por sobrevivência, clamam por consolo, por companhia, por conforto, mesmo sabendo que nenhum deles conseguirá transpor a barreira final.
                A morte, aquela que os médicos aprendem a compreender e a respeitar, que precisam desmistificar diuturnamente, com quem muito aprendem ao entender que sua função não é vencê-la, pois ela não está propondo combate, mas sim cuidar e zelar para que sua passagem ocorra da maneira menos dolorosa, mais tranquila, mais suave.
                Essa é a imagem que escolhi cultivar do médico, mesmo convivendo, na maior parte das  horas, com os médicos que renegam a medicina poesia para exercer a medicina vaidade. Que o médico não troque os sentimentos de amor e gratidão pelos sentimentos de soberba e competitividade. Que o médico não transforme sua presença de esperança e confiança em um nome a mais para uma lista de plano de saúde. Que o médico não siga acreditando que sua maior vitória é ser o primeiro lugar nas provas, permanecendo nos lugares distantes em suas barreiras emocionais. Que o médico não se limite a vender serviços, esquecendo-se da grandiosidade dos sentimentos gratuitos. E, sobretudo, que ser médico não se transforme em um risco plantado por tantos profissionais que quebraram o espelho onde se refletia a verdadeira imagem do médico, porque essa imagem, embora desacreditada no tempo, é o que torna música o silêncio dos nossos passos.

2 comentários:

  1. Você não poderia transmitir com melhores palavras como vejo você como futura médica! É muito bom ter pessoas assim na nossa sociedade. Agradeço em tê-la como amiga. E transcrevo aqui o que meus pais disseram ao ler esse texto: "essa menina é uma iluminada"! Parabéns

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  2. Dra Manu, suas palavras pedem licença mas é a sua essência que aparece. Parabéns pelos textos a flor da pele que comovem ao provocarem reflexão. Parabéns pelo entendimento do que é ser médico. Siga em frente e não se deixe abater pelos inúmeros obstáculos que encontrará... verás que o maior reconhecimento será sempre mudo, num comovente olhar de agradecimento! Abraços de uma colega
    Sylvie JMG Toquetti

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